
“...E você que está me ouvindo / Quer saber o que está havendo/ Com as flores do meu quintal / O amor-perfeito traindo / A sempre-viva morrendo / E a rosa cheirando mal” Agora Falando Sério – Chico Buarque
A vida era boa da janela para dentro. O enlevo dos paladares, cada tez e respectiva maciez, sutilezas aromáticas, acordes consonantes compunham o cenário de uma perfeição assistida.
Distado dali a poucos passos, um jardim se exauria. Revoluta àquela inerência estéril, somente uma lavra daninha de ervas grassava. Atmosfera desolada, ecossistema retroautofágico. Sobre e subaquilo nada era possível subsistir. Ainda assim, havia.
Sufocadas entre a folhagem inóspita, violetas e margaridas pendiam à própria vicissitude. Inábil na feitura de sua seiva, begônias e dálias sucumbiam. Na côdea rejeitada pelas heras parasitas, era a orquídea quem convalescia. O jasmineiro sem olor se empenhava em reproduzir o dos dejetos em derredor.
Pouco se davam pela riqueza encoberta que abrigavam em seus quintais. Vez por outra pisoteavam aquele simulacro de pântano e maldiziam o poder de coerção de seus espinhos. Amaldiçoavam a lembrança de pesares que lhes causava a textura cinzenta do quase-brejo.
Arquitetaram atear-lhe fogo, cimentar a exposta ferida. Realentá-lo é que jamais se cogitou. E então conviveram e se debateram mundo e submundo. Retroalimentando-se, retrorregurgitando-se.
O jardim, e quase se ri a apodá-lo assim, sabia desferir seu ódio por sua impenetrabilidade hostil, na sua antiestética inflexa e bruta. E traduzir-se num lamento visual histérico, porquanto moribundo.
Por sua vez, o hermético polígono compreendido pela janela e o interior das estruturas que lhe permitiam o sustento apenas suportavam o afônico embate.
Enquanto houvesse danado herbário a que tornar quarto de despejo sentimental e orgânico, não precisar-se-ia acirrar animosidades da secção interior daquela câmara.
Em contraponto, enquanto houvesse despojos aterrados no jardim, floresceria a cólera no fulgor de seus espinhos e a indiferença vívida na secura retorcida dos caules.
E assim, cada um a seu método edifica esse ofício de antijardinagem: uma semente frígida que abandona sua finitude ao concreto; ancinho que penteia folhas desfalecidas; a poda anterior ao semeio; a brisa como a jornalista da pandemia; formigas profanam um cospe-flor ali jacente; débil floresta pulverizando antropotóxicos. Corre a criada a esterilizar com vinagre os vegetais. Fibras perniciosas da horta serão salada servida à mesa: raízes nanicas, tubérculos natimortos e seus frutos malogrados. Eis servido o banquete da humanidade.
PS.: Quando assisti ao Hotel Açucenas, em que a nossa Michelle se apresenta avassaladora, inicialmente não quis escrever nada. Esta píton aqui demorou a digerir e verter o produto em palavras. Esse bolo alimentar germinou o que vocês leram. Verdade é que escrevi três textos diferentes. O que aqui publico é o que mais se aproxima do que senti. Michelle, assim como Margarida, aqui e assim me dispo.
http://rosadosventosbh.blogspot.com/2007/07/manual-de-antijardinagem-para-michelle.html?showComment=1184799000000#c95424713544808684'> 18 julho, 2007 19:50
impressionante como seus textos leo tem o poder de calar as pessoas... eu acho q depois desse texto eu num vou ter coragem pra escrever aqui de novo...heheheheh
infelizmente eu naum pude ir à peça mas imagino q deve ter sido genial... todos estão comentando espero poder assitir na próxima temporada
http://rosadosventosbh.blogspot.com/2007/07/manual-de-antijardinagem-para-michelle.html?showComment=1184852700000#c8819372437604921067'> 19 julho, 2007 10:45
Rodrigo,
Acredito que ter um texto capaz de calar é, particularmente pra mim, ofensivo.
Já disse, e repito, porque a percepção não modificou, que a palavra - especialmente a escrita - é débil e não sequer tange o sentimento. Sua única valia, conforme avalio, seria poder chacoalhar as pessoas, transformá-las em algo que não eram antes de contatá-la (assim como o teatro o faz tão bem).
Não sendo capaz de alcançá-lo, portanto, calo-me eu...
http://rosadosventosbh.blogspot.com/2007/07/manual-de-antijardinagem-para-michelle.html?showComment=1185045000000#c1497523592130139854'> 21 julho, 2007 16:10
Léo,
...quero dizer que fui alcançado sim pelos seu texto e principalmente por tamanha sensibilidade contida nele...não se ofenda ao calar outros com sua escrita.. meu silêncio não expressa o desdém ou mesmo insensibilidade, mas sim um redemoinho de coisas que não consigo expressar...
Enfim,quando me calo perante algo, é como se um turbilhão de idéias fosse colocadas em mim,não de forma cirurgica e alienada mas sim de forma orgânica como se estivessem dentro de mim esperando algo para catalizá-las...
Então...calar-se é me privar dessa sensação...