Toca, Sísifo, a rocha coberta da poeira que o tempo joga. Se o cinza do dia escorre cidade adentro, ela, mancha rosa, rastro, borrão, abandona a selva sonora e invade o odor do pó preto do qual pede um pouco. Silêncio e relaxa. Do outro lado do vidro, queima-se combustível e pedras de crack, as pupilas dilatam e o sêmen percorre seu caminho. Em Madagascar, a população mata todos os Daubentonia madagascariensis que encontra (animais também conhecidos como Ai ai) por acreditar que são símbolo de mau agouro. Vê?, como poderia ser diferente, Sísifo, se você tem mãos de rolar pedra? Diz que é árdua a tarefa, diz que é sina, que é trabalho à sua altura, mas não vê, Sísifo, que essa pedra abriga uma humildade mole, uma ternura que – indago seu coração (de carne, realmente?) – jamais será capaz de compreender. A cegueira insistente de movê-la faz de você a pedra surda e faz da rocha a condenada a suportar sua pieguice sem medida. Sim, ela aceita um cinzeiro, obrigada. E observa que a consonância das cinzas batidas com o cinza da cidade. Imagina se vai chover traga sente um pouco de náusea traga põe o cachecol no pescoço traga preciso pintar o cabelo traga convém comprar mais suco traga e a pílula do dia seguinte, que nunca vem. O ai ai pode ter até 45 centímetros, mas a cauda pode ultrapassar os 50. É por natureza noctívago e solitário, se alimenta de frutas, mas sua principal fonte de alimentação são as larvas de insetos que encontra nos troncos das árvores. O ai ai encontra as larvas pelo som que elas produzem. O peso está em seus braços, Sísifo, não na pedra que aparenta o firmamento. Se ela pesa, é sinal de que você se enganou corretamente, e carrega por engano a pedra certa: não a que deseja, mas a que precisa – sua consciência, sua insensibilidade, seu ego empapado de covardia. De insistir em arrastá-la, seu pranto implora que as montanhas se alisem, pede livre passagem. Não, com ele eu não deveria, mas fiz, mas fez, e... ah! como cheira bem a irresponsabilidade! Insípido se torna o gosto da iguaria rara quando não se sabe gozar. De quem falo? Besunto logo as mãos na massa doce, lambo o que resta entre os dedos. Será que aceita cartão? Estou grávida. A pedra é leve, por que transpira ao carregar? Sísifo dos olhos incapazes, que desaprenderam a enxergar que a rocha fica muito bem onde está. Ela não te precisa. Você é desnecessário. A incompreensão rompe seus ossos patéticos – a pedra é volátil, respirável, nós a exalamos pelos poros. Seus braços se esticam: esmagam-nos a leveza que não pode perceber. No escuro não se consegue ver os seus dedos longos e finos, com unhas em forma de garra, a sua cauda encorpada. Só aparecem os olhos brilhantes, cor-de-laranja. Está em extinção, restam apenas algumas dezenas. Acontece todos os dias. Acho que vou comprar beladona. Loja em liquidação. Rola na língua o sabor final da cafeína, sopra de volta ao mundo a fumaça que dele aspirou, injeta no metal o que restou do filete de nicotina. Borra de novo o cinza com seu corpo rosa, olhos brilhantes cor-de-laranja, do alto do salto alto para a larva de metal. A população mata todos os dias. Acontece, ai ai. E a pedra rola sobre Sísifo.
O dia em que a pedra rolou sobre Sísifo (ou 26 de junho de 2008)
By Iki Goulart
on 8/14/2008 02:04:00 PM
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