Módica fábula contemporânea: sob auspícios da Microsoft

By Leo Peifer on 3/17/2009 11:25:00 AM
A garota erege das sombras da noite, acede ao quarto dos pais, como uma bem-sucedida parceria Cravinhos-Richtoffen:
-Mamãe, tem uma propaganda debaixo da cama!
-Não tem não, Ciça. Volta a dormir.
-Tem sim. Ela quer me pegar.
- Toda noite agora, filhinha?
- Ela fica falando que vai regular meu intestino. Só porque eu borrei tudo de medo. Mas aí, mamãe, eu nem ligo mesmo, porque o moço do sabão me defendeu, falando que eu se sujar faz bem.
- Não, querida, nesse caso, se sujar não é nada bom.
- Mas, mãe!, é que eu tava é segurando, porque eu ia fazer cocô na casa do Pedrinho, que tem aquela glande que papai usa no carro pra não feder, sabe?
- Antônio Augusto, você ouviu o vocabulário que a sua filha está usando? Escuta aqui: e o ultimato que eu te dei sobre a assinatura daquelas revistas...
- As revista do papai que tem o frajola e o piu-piu?
- Ciça, chega! Você está sem sono e quer tomar leitinho, é isso? Vem, mamãe vai preparar.
- Nãããão! Eu quero um Juicer de setes velocidades!...Mãe, olha só!, a gente pode fazer suco de Marquinho!
- Tá louca, menina? Fazer suco do seu irmão?
- A moça da tevê fez com pedra. Deu um caldinho e ficou muito ótimo!

Antes de voltar à própria cama, e após convencer a filha de que o Washington Olivetto não estava debaixo do móvel com a camisa do Corinthians, a mãe subjugou a filha ao velar das harpas. Mas resolveu discutir sua relação com o esposo.
- Antônio Augusto, eu tenho que te contar uma coisa.
- O que é, Maria Helena? Me deixa em paz. Eu já cancelei a assinatura da revista e nem assisto mais ao Pay-per-view erótico...
- Não, não é nada disso... Espera: você assinava canais eróticos?
- Você está louca, Maria Helena? Eu jamais pagaria uma coisa dessas... Eu fiz um gato do vizinho. Mas o que é que você quer, afinal?
- É... Hoje, enquanto fazíamos as compras, um homem dançou tango comigo no supermercado. Pronto, falei.
- O quê?
- Foi sem querer. Eu fui pegar um azeite na gôndola e ele me arrebatou.
-Ah, arrebatou, Maria Helena?
- Ele deveria estar fazendo a reposição dos estoques e ficou preso do lado de dentro da pirâmide, deveria ser português, sei lá . Ele estava vestido de cozinheiro. Então eu o libertei do cárcere e ele quis me recompensar com uma dança. Foi só isso.
- Eu só não parto sua cara, porque...
- O quê?
- Eu também levei uma cantada hoje no supermercado.
- Como assim, Antônio Augusto?
- Eu fui escolher um detergente e uma mulher me abordou.
- Ah, abordou, Antônio Augusto?
- Enquanto você rodopiava às tontas com seu chef lusitano, um de nós dois mantinha os pés na realidade e materializava nossa lista de provisões do mês, sabia? Quando cheguei ao totem dos detergentes, aquela mulher surgiu e me declamou uma linda pensata, uma bela poesia.
- Que mulher? Que bela poesia?
- Ela olhou no meus olhos, como se olhasse o fundo de minh´alma, interpretou as tormentas de minha vivência e com o hálito dos sábios somente disse: "Dúvida por quê?"
- Que imbecilidade, Antônio Augusto. Primeiro: não era poesia, era marketing. Segundo: Suzana Vieira? Essa era a mulher? Aquela mesma do corega? "Fixa as dentaduras que eu mesma não uso".
- Melhor, afinal, que sua toupeira lisboeta! E, quer saber? No setor de congelados eu ainda tive que me desviar da risadinha marota da Ana Maria Braga e do olhar lânguido do Didi Mocó na seção de legumes.
- Grande coisa.
- Como você é invejosa, Maria Helena!
Viram cada qual para sua direção, nucas contrapostas, e se calam sob o fel tecido. Breve se juntarão à filha, quando Morfeu entoar o jingle de Auris Sedina.

Comments

1 Response to 'Módica fábula contemporânea: sob auspícios da Microsoft'

  1. Larissa Horta
    http://rosadosventosbh.blogspot.com/2009/03/modica-fabula-contemporanea-sob.html?showComment=1237314060000#c5125116148067469778'> 17 março, 2009 15:21

    Muito bom, Leo!