
Quando frequentava a Faculdade de Educação da UFMG, em razão da graduação em Letras que lá fazia, conheci uma criatura que em tudo fazia lembrar uma pessoa comum, contanto não se desfizesse seu véu da superficialidade social.
Certa vez, quando aparentava algo perturbado, perguntei se ele estava bem, ao que respondeu não ser nada demais, havia terminado com a namorada (e mesmo sendo um nazista não atirou nela). E que não se devia sofrer por mulher, já que eram muitas e interesseiras.
Tudo bem. Você pode achar que tudo foi motivado pela dor-de-cotovelo. Mas ficou pior com o tempo. Ele havia dito que só tinha amigos porque era rico, e seus "amigos" amavam aquilo que ele poderia proporcionar - financeiramente - e que isso era a ordem natural no mundo (tudo soou de forma a pensar que pobres não têm amigos, somente comparsas).
Para encerrar o festival de lançamentos de asneiras em curta distância, deveria ter sido laureado quando disse que pessoas excepcionais deveriam ser isoladas da sociedade. Segundo ele, essas pessoas eram um atraso ao desenvolvimento das outras, sugavam-lhe o tempo para produzir e se aprimorar, enquanto cuidavam de alguém incapaz de retornar algum bem à sociedade.
Devo, por fim, ressaltar que esse quadrúpede, esse escárnio à humanidade, é um estudante de Direito.
Os meses se passaram e eu deixei para trás o curso de Letras e todas as suas mazelas e intolerências. Mas vocês sabem, a vida é cíclica e nesses rodopios alucinantes encontro-me com quem? Com o preconceito. De novo. No trabalho.
Um alto assessor do local em que trabalho, em razão do meu contato e alguma proximidade com a língua portuguesa, chamou-me para uma conversa amistosa. Fazia as vezes de bom anfitrião, ponderava sempre seu expressar para deixá-lo soar como cristal bem polido. E sobre essa polidez instituída pelos doutores - já mortos, não custa lembrar - da Língua Portuguesa, esboçava no rosto o que eu pensava ser um sorriso, enquanto à meia-luz soerguia os aguçados caninos.
— Interessante essa história de Língua Padrão... - começou.
— Por quê?
— Porque se diz dela ser padrão, mas poucos a usam. O povo não usa.
— A função primordial da Língua é se fazer entender. E as pessoas se comunicam...
— ...Outro dia, minha empregada chegou em casa dizendo que fulano era "cabrito". Como me interesso muito por essas corrupções (sic) da Língua, quis saber o que significava. Significa alguém que trabalha para o tráfico. Agora veja o que inventam: "cabrito".
— Sabe que...
— ...Outro dia liguei para a Rede Globo. Fui reclamar sobre a linguagem daquele Programa Zorra Total. Tem um personagem que fala repetidamente "vareia". As pessoas acham graça e repetem isso na rua. Um desserviço.
— Isso não deixa de ser uma estratégia para alcançar e entreter um público que...
— ...Outro dia estive em uma premiação na Assembléia Legislativa. Junto conosco veio um pessoal do setor de estudos Afrobrasileiros que iria se apresentar. De repente eu vi aquele monte de negro com turbante colorido e tambores e nós estávamos ouvindo um coral belíssimo. Disse para o representante deles: você diz que é afrodescendente... Eu então sou eurodescendente, meus avós eram portugueses... (esboça um sorriso cândido) Vocês deviam largar pra lá essa coisa primitiva de tambor, de tribo. Daqui a pouco vão voltar ao canibalismo! - afirmou com outro sorriso cândido no rosto.
— ... (já desistindo de argumentar)
— ... Eu disse: deixa de lado essa coisa de pobreza, de tribo, de tambor! Onde estão os grandes negros da história? Por quê você não pesquisa?... Sabe que essa nossa conversa o marcou profundamente?
— Imagino realmente que tenha (eu sentia a ironia escorrendo da minha boca).
— Pois é. Marcou mesmo. Está na hora desse povo evoluir.
Cada dia mais convicto, meus admirados cumprimentos aos batuques mais sentidos da senzala, meus mais sinceros agradecimentos aos índios que comeram o bispo Sardinha.
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