A ocasião faz o herói

By Orósio Dias on 9/03/2010 11:35:00 PM
Um aperitivo, um fast food enlatado (com um molhinho de alta cultura), apenas enquanto termino meu cigarro.

Por ocasião de um filme antigo que eu estava vendo, veio-me à cabeça a seguinte imagem: mascarado, o herói sobre a ponte enfrenta o inimigo, que o provê duas opções: em uma das mãos, a mulher que ama, na outra, vários civis inocentes, que nada têm a ver com o caso. Atentemos para o detalhe de que, para equilibrar o peso do amor, a outra mão continha um grande número de pessoas. Enfim, o fato é que, com esse singelo gesto, o sábio vilão reconstrói toda a história, desde os tempos imemoriais, e restaura o herói ao papel que lhe é devido: o de aquele que faz uma escolha.

Por falar nos tempos imemoriais, lembremos o célere Aquiles, de pés velozes, cantado na Ilíada de Homero. Ele nos basta para entendermos o arquétipo do herói. Descrito como o mais belo e como o melhor dentre todos os guerreiros que tomaram parte na guerra contra Tróia, possuía imensa capacidade de saquear e exterminar toda e qualquer coisa que lhe surgia à frente. Aniquilou, com precisão cirúrgica, inúmeros dos seus oponentes que lhe imploraram clemência, não atendendo nem mesmo os pedidos de salvar os corpos dos seus desafetos dos dentes dos cães famintos. Fica assim descrito, como o de um pirata, o quadro do que significa ser o herói, longe da noção romântica que se dissemina.

Logo de início, no primeiro canto da referida obra, se não me falha a memória, nosso herói se zanga com o rei dos Atridas, Agaménon, e decide que gostaria de riscar-lhe a garganta com a lâmina de sua espada. Aquiles lança a mão ao cabo da arma, presa à sua cintura, e então Palas Atena, deusa da guerra e da sabedoria surge, e coloca o Pelida no papel que lhe cabe. Atena, visível apenas para Aquiles, como se consciência fosse, recomenda que o guerreiro mantenha sua arma na cintura, sugere que não ataque Agaménon, pois ele teria o que merece e os deuses dariam a Aquiles muito mais glória do que ele agora poderia gozar. Agora é necessário afirmar que, embora acometido pela responsabilidade da decisão, o guerreiro Aquiles ainda não se fez herói. Até o momento, ele ainda não é nada mais que Aquiles de pés velozes, bravo guerreiro, filho da ninfa Tétis e de Peleu, os mirmidão. “Quando é que ele se torna herói?” perguntamos. “Quando ele retorna a lâmina para a bainha, evita o derramamento de sangue e dá ouvidos à deusa”, respondemos. O que o faz herói é a capacidade de tomar a determinada decisão. Um detalhe a mais deve ser lembrado, a respeito do Pelida: ele, através de toda sua história narrada, percebe referências sobre seu fim – a morte – como se inconscientemente soubesse e caminhasse em direção a ela.

Retomando o universo da referência inicial, e recuando um pouco no tempo, há muito tempo, em uma galáxia muito, muito distante, para ser mais um pouco mais preciso, podemos encontrar na figura do jovem Anakin Skywalker a concentração de todos os atributos conferidos ao herói. Impetuoso, bravo e habilidoso, como o Pelida Aquiles, o chamado jovem Skywalker ilustra perfeitamente o trajeto da “jornada do herói”, da forma como foi definida pelo estudioso Joseph Campbell. Anakin cresce, torna-se o mais poderoso de que já se teve notícia, e, fatalmente, sucumbe àquilo que havia sido atestado já no seu primeiro encontro o os sábios que o orientariam: o medo.

Esse sentimento tortura durante toda a vida o herói, o deforma, e faz com que ele comece a procurar alternativas que ele, enganadamente, julga necessárias. Perturbado, ele se sente incapaz, e logo cai em uma espiral sem fim de ânsia por poder. Confuso (ou, na melhor expressão, em inglês, twisted), Anakin se vê na ocasião da escolha, e, ainda que orientado por seus mestres e pela entidade denominada “Força” (ambos, como propõe a teoria universal dos mitos, de Campbell, exercendo o papel de conselheiros, aquele de Atena) opta influenciado pelo medo. Na intenção de fazer o bem, ele trai a ordem a que pertence, assassina os amigos, ocasiona a morte de sua mulher (grávida de gêmeos), e, em um último confronto com seu mentor, perde os três membros que lhe restavam (a guerra já havia tolhido seu braço direito) e é carbonizado pelo calor do magma. E eis o herói trágico. Anakin, entretanto, sobrevive, e o círculo em que ele havia se circunscrito se fecha, e ele se torna o que aqueles que desejam poder se tornam: a máquina, o sistema.

Muitos e muitos anos mais tarde, apenas, Anakin Skywalker (nome já abandonado e absorvido pela máquina) se vê novamente na ocasião de escolha. Vendo seu filho sofrer nas mãos daquele que o tornou o que ele é, ele, depois de muito hesitar, se lança contra o velho mestre, arremessando-o para a destruição e se redimindo, finalmente, frente sua escolha prévia. Mas é tarde demais para o agora velho Skywalker, restando a morte nos braços do filho.
Interessante, portanto, os esclarecimentos que as estruturas míticas nos proporcionam a respeito do papel do herói. Resumidamente, parece ser alguém que, mesmo sabendo que seu fim é a morte, consegue enxergar na bruma uma determinada decisão, e carrega consigo a coragem necessária para levá-la à cabo.

Pois voltemos ao dilema do início do texto: ele salva a mulher ou os civis? Como eu disse, é apenas um aperitivo. Fique você com o prosaico e indigesto prato principal do heroísmo cotidiano e divirta-se decidindo sua forma favorita de morrer.

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