Crítica crítica crítica

By Orósio Dias on 3/05/2010 10:00:00 PM
Esse texto não vai começar com uma pseudo-frase de efeito. Ops! Acabou de começar.

O que aconteceu, no entanto, não foi nada mais do que a perpetuação de uma tradição crítica cuja origem data de períodos obscuros da História. Não pretendo aqui dissertar sobre o emprego das frases de efeito nas críticas ou no jornalismo contemporâneo, mas sim cutucar um certo órgão dos autores que parece jazer inerte, prostrado, adiposo. Aperte F1 para ajuda.

Frases de efeito são úteis. Elas, em poucas palavras, são capazes de transmitir plasticidade, conteúdo e... efeito. Diferentemente do slogan, as mencionadas frases iniciais de um texto crítico, resenha ou congêneres, não visam necessariamente fácil memorização, mas, assim como seu correspondente publicitário, partilham de um grande poder de síntese, portam uma ogiva de verdades. E isso sim, para quem ainda não entendeu, é matéria da nossa discussão: o poder (e a crítica) da crítica.

Não faço idéia de quantos dos assíduos leitores de crítica, opinião, diversas colunas, reviews e afins, se sentem ultrajados como eu me sinto ao ler um artigo em qualquer veículo midiático. Nem mesmo as mídias mais democráticas (como na internet) nem as mais tradicionais (como nos jornais impressos) estão livres da tentação que granjeia os autores das resenhas que lemos atualmente (curiosamente, os periódicos especializados parecem sofrer com menos freqüência desse mal, ainda que seus redatores sejam coincidentes com de outras mídias). E, com no mínimo uma década de vigência, a lição que tiramos é a de que, por vezes, criticar bem é falar mal. Isso porque, generalizando, detesto generalizações. Em todo caso, a hipótese que suporto implica que houve, de certa perspectiva, uma inversão de papéis entre a crítica e seus objetos.

O que se sucede é que, aparentemente, mais de 5.700 anos depois, se não me falha a memória (de acordo com o calendário judeu, claro), a tal maçã ainda continua suculenta e sedutora. O pomo de Adão se confunde, cada vez com mais facilidade, com poder, e o resultado é o que vemos nos periódicos. Em uma conferência que intitulou O que é a crítica?, Michel Foucault problematiza as relações entre saber e poder no decorrer da história ocidental moderna. O filósofo traça desde os séculos XV e XVI o surgimento do que chama de atitude crítica, passando pela criação (e aplicação) de técnicas de controle (ars artium) e uma primeira definição de crítica: a arte de não ser governado. No caso, o alvo primário da crítica é claro: de um modo geral, o governo e a religião. Para que a percepção fique mais próxima, podemos estipular a crítica voltada para a produção artística e cultural como nosso objeto.

Consensualmente, a resenha crítica é um gênero que apresenta estrutura simples e de rara variação, mesmo considerando a explosão quantitativa que ocorreu do meio da década para cá, com o advento e evolução dos blogs. Constitui, no mais das vezes, uma crítica a apresentação de um objeto, seguida de uma análise geral, que por sua vez pode ser seguida de uma análise técnica ou de uma valoração baseada na subjetividade do autor, contendo ou não argumentação detalhada que sustente a crítica. Logo, fica claro que a avaliação, sendo subjetiva, representa, em concordância com Foucault, um saber, ou seja: uma leitura, uma perspectiva. A crítica, viva através dos críticos, estejam eles bem preparados ou não, suplanta seus princípios e o que deveria soar como uma leitura particular termina por soar como verdade geral, unânime, dogma. Tudo isso, do ponto de vista textual, por ultrapassar o compromisso máximo daquele se presta ao serviço de reportar, e o requisito mínimo àquele que se presta a escrever. A saber, respectivamente: a verdade (aqui entendida como a fidelidade ao objeto e como o compromisso com a parcialidade) e as estruturas de escrita. A teoria subentendida da crítica contemporânea é “envolva-se afetivamente com seu objeto e imponha suas conclusões aos leitores, através da coerção”. E quem é que não quer poder? Há, dessa forma, simultaneamente, por parte da crítica, uma inversão de papel - indo de recurso dos oprimidos por um discurso de verdade a um modo de produção de discursos de verdade – e uma ampliação de poder, uma vez que, por seu lado, ela mantém a capacidade de indagar, de confrontar um discurso de verdade com um novo discurso de verdade, causando um embate ou uma substituição. De qualquer forma, um instrumento de poder.

O movimento resultante vai diretamente contra aquele proposto por Immanuel Kant quando discute o conceito da Aufkarüng, ou, de outro ponto de vista, age conforme a teoria. Restringindo a si o poder e a verdade, as críticas que sofreram a mencionada inversão de papéis podem ser capazes de subjugar o leitor, operando como obstáculo ao seu movimento de saída da menoridade – em Kant, entendida como a inviabilidade de um indivíduo empregar sua compreenção, sua inteligência sem a interferência de outro. Estancando o progresso do nosso hipotético leitor, a crítica está condicionando-o a si mesma, tornando-o incapaz de atingir um entendimento por mérito próprio. Nova hipótese: o leitor torna-se dependente da crítica, agora irradiadora de verdades, pastora. Vêm-me à mente alguns filmes, autores, canções e pratos que, vítimas de semelhantes críticas, foram lançados à glória ou ao esquecimento.

A tradição recomenda exigência ao aspirante a crítico. Crítica crítica crítica é difícil de fazer. Foucault, cantando a crítica, caracteriza-a como inservidão voluntária, indocilidade refletida. Hoje, quando muito, indocilidade apenas. Essa é fácil de fazer. E se você, possível (ou impossível) leitor, não é partidário das idéias expostas nessa crítica e considera que “o importante é criticar”, tome a própria como exemplo e tenha uma boa menoridade.

Até mais ver.

Comments

2 Response to 'Crítica crítica crítica'

  1. Leo Peifer
    http://rosadosventosbh.blogspot.com/2010/03/critica-critica-critica.html?showComment=1267892091168#c6707911303133102062'> 06 março, 2010 13:14

    Olá, Osório Dias. Sê bem-vindo. Sê longevo. Sê polêmico.

     

  2. Larissa Horta
    http://rosadosventosbh.blogspot.com/2010/03/critica-critica-critica.html?showComment=1268092738410#c7361150951425490944'> 08 março, 2010 20:58

    Orósio? Osório? Quem é esse, Jesus???